Laboratório venderá misoprostol a hospitais e já solicitou permissão para distribuí-lo em farmácias
El País
O Senado argentino decidiu que o aborto continua sendo um crime punível com prisão, exceto em caso de estupro ou risco para a saúde da mãe, mas o país dá cada vez mais passos para, na prática, legalizar a interrupção voluntária da gravidez. A Anmat, agência reguladora de medicamentos, autorizou pela primeira vez um laboratório argentino a fabricar com fins obstétricos o misoprostol, um fármaco que a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera ser um dos métodos mais seguros para interromper gestações. O laboratório Domínguez recebeu luz verde para vender o misoprostol a hospitais, mas já solicitou também a permissão para distribuí-lo em farmácias.
Atualmente, a maioria das argentinas que quer interromper uma gravidez indesejada recorre a uma mistura de misoprostol e diclofenac, comercializado como protetor gástrico. Mas o conhecimento sobre essa droga ainda não é generalizado, ou há gestantes que não têm condições de pagá-lo. Na segunda-feira, uma mulher de 34 anos morreu num hospital portenho depois de tentar improvisar um aborto com salsinha. Mãe de uma criança de dois anos, a mulher chegou ao pronto-socorro em estado grave, com uma infecção avançada. Os médicos extirparam seu útero, mas não conseguiram salvá-la. É a primeira vítima conhecida por aborto clandestino desde que o Senado rejeitou o projeto de lei que legalizaria a prática do aborto, há uma semana. Em 2016, último ano com dados oficiais, 43 mulheres perderam a vida na Argentina por complicações decorrentes de abortos clandestinos.
O laboratório Domínguez começou a pesquisar a produção do misoprostol em 2009. “Primeiro desenvolvemos a linha ginecológica Misop 25 para a indução de partos, e agora um com concentração de 200 miligramas, que já foi aprovado. Não existia na Argentina este medicamento com indicação específica para ginecologia e obstetrícia”, diz Sandra Carina Rismondo, diretora técnica do Laboratório Domínguez. “É um grande feito para uma empresa com uma trajetória de 114 anos”, acrescentou. A Anmat autorizou a produção no começo de julho, em meio ao debate parlamentar sobre o aborto. Entre os usos do Misop 200 está a “interrupção da gravidez nas condições estabelecidas pela legislação vigente em nosso país”, informou a agência reguladora em nota nesta quarta-feira, 15.
“É um pequeno passo, mas um ótimo passo. O ideal seria a produção estatal”, salienta a médica generalista Viviana Mazur, do Programa de Coordenação de Saúde Sexual, AIDS e Infecções de Transmissão Sexual da cidade de Buenos Aires. Ela lamenta que o novo fármaco não possa ser adquirido em farmácias e que só seja distribuído a hospitais com serviço de obstetrícia, o que deixa de fora os postos de atendimento primário de saúde. Também considera um obstáculo que só possa ser administrado por via vaginal, e não sublingual.
A produção estatal de misoprostol parece ser questão de tempo. O LIF, um dos laboratórios públicos da província da Santa Fe, dedica-se a esse objetivo. “No começo do ano iniciamos o processo industrial e esperamos que em alguns meses tenhamos os primeiros comprimidos para entregar gratuitamente”, diz o coordenador de Saúde Sexual e Reprodutiva do Ministério de Saúde de Santa Fe, Oraldo Llanos. Nos primeiros seis meses deste ano, a província registrou 450 abortos não puníveis. Em sua maioria foram feitos com medicamentos comprados de um laboratório a um preço muito superior ao que será praticado para os comprimidos de fabricação própria. Ainda não existe um cálculo preciso sobre a economia para os cofres provinciais, mas poderia superar 70%, segundo Llanos.
Tanto Santa Fe como a capital argentina contam com protocolos sobre abortos não puníveis. Em muitos de seus hospitais e postos de saúde há um serviço de assessoramento para a redução de danos a mulheres decididas a interromper sua gravidez sem se importar com as consequências legais. Mas a situação é muito diferente em outras províncias, que nem sequer têm protocolos aprovados para garantir abortos pelas causas contempladas na legislação desde 1921. É o caso da província de Buenos Aires, onde foi registrada a morte mais recente por aborto clandestino.
“Acreditávamos que a informação chegava a todos os lados, que tínhamos popularizado o acesso ao misoprostol para que os abortos clandestinos fossem os mais seguros possíveis, mas a última morte deixa claro que a informação não está chegando, ou que o dinheiro das pessoas não é suficiente”, salienta Miranda González Martín, integrante da Campanha pelo Aborto Legal, Seguro e Gratuito. “Se uma mulher estiver tão desesperada a ponto de enfiar um ramo de salsinha para abortar, com o perigo de infecção que isso representa, deveria entrar na hipótese de risco à saúde da mãe. Mas nem sequer esses casos são garantidos”, acrescenta.
González Martín destaca que a enorme mobilização popular em favor da legalização do aborto, há uma semana, deixou claro que cedo ou tarde as mulheres argentinas terão o direito a decidir quando e como querem ser mães. “Sabemos que não há volta, mas cada morte nos faz perceber que ainda não ganhamos”, observa. Por causa da recente rejeição do projeto, o Congresso só poderá voltar a legislar sobre o tema daqui a um ano.