Condições climáticas na região do Douro deram origem a um vinho luxuoso
Manuel Carvalho
No dia 18 de outubro de 2016, o enólogo Charles Symington, autor dos grandes vinhos do Porto com as marcas Dow’s, Graham’s ou Warre’s, fez uma previsão profética. Escrevendo o relatório de vindima daquele ano, um hábito que as firmas inglesas conservam há mais de um século, Charles começou por reconhecer que a chuva que caiu no Douro em setembro desse ano tinha obrigado a adiar a vindima para outubro, o que “representou um risco bastante grande”. Com o avanço do outono, a precipitação torna-se mais provável e os enólogos entram em pânico.
Mas, felizmente, a vindima progrediu “sem uma única gota de chuva e sob céus limpos”, o que permitiu a Charles uma confortável conclusão: “Os vinhos são generosos, aromáticos e muito equilibrados e ninguém estranhará se 2016 for declarado Vintage”. Dois anos passados, a profecia concretizou-se. Com exceção da Ramos Pinto e da Niepoort, todas as principais casas de vinho do Porto declararam os seus Vintage sob a égide das principais marcas. E, mais importante, começou-se a criar a ideia de que, entre os vinhos declarados, há estrelas que podem tornar o ano memorável na longa memória da categoria mais emblemática do vinho do Porto.
Depois de um ano extraordinário como o de 2011, as empresas de vinho do Porto colocavam-se perante um desafio complicado: como repetir um Vintage mítico, comparável àquele? Desde então, vários anos registraram colheitas muito boas, principalmente as de 2012 e 2015. Casas como a Niepoort ou a Ramos Pinto declararam os seus Vintage clássicos (com as suas marcas principais) em 2015, e muita gente acreditou que as outras não lhes seguiram os passos por meras razões de natureza comercial — o Vintage tem por tradição associado um conceito de raridade. Depois de se provarem os vinhos de 2016, percebe-se que não. Os Vintage de 2015 são muito bons, mas não garantem a mesma pureza e profundidade aromática, nem a textura ou a elegância dos de 2016.
Hoje é praticamente consensual que as comparações dos 2016 não se devem fazer com os 2015, mas com a grande declaração de 2011. Serão comparáveis? “Os Vintage de 2016 são muito diferentes dos de 2011 porque não têm a concentração própria de um ano quente. Estão mais em linha, por exemplo, com os de 2007. Têm mais frescura, mais elegância e taninos mais finos”, explica David Guimarães, enólogo da Fladgate Partnership, dona de marcas como a Taylor’s, a Fonseca e a Croft.
Luís Sottomayor, enólogo da Sogrape, que este ano produziu três Vintage (Sandeman, Ferreira e Offley) de uma qualidade que os colocam entre os melhores registros da casa em muitos anos, concorda: “os Vintage de 2016 são mais elegantes e harmoniosos que os de 2011”.
Todos os grandes vinhos se começam a construir a partir de anos climáticos favoráveis, mas poucos como os Vintage dependem tanto dos caprichos da natureza. Anos quentes e secos dão vinhos mais concentrados, com mais volume e uma estrutura mais poderosa. Anos em que a temperatura média é mais baixa, com chuva mais distribuída pelos meses do verão europeu, dão vinhos mais finos e elegantes. Nesta equação simples, porém, basta que um dos fatores esteja deslocado para que o balanço final seja comprometido. Sendo um vinho cuja arte depende mais da escolha dos lotes que entram na composição dos Vintage, seja na vinha ou, mais tarde, na adega, do que das artes da enologia, o que mais os determina são por isso os caprichos do ano climático.
Provados ainda na sua primeira infância, os Vintage são vinhos explosivos na boca, seja pela potência e riqueza da sua fruta, seja pela estrutura tânica que lhes confere uma garra especial e equilibra a sua elevada doçura natural. Mas sendo esta a regra, é fácil perceber que os 2016 são excepcionais nestas duas dimensões. O seu perfil aromático é mais delicado e floral e o seu músculo menos tenso e dramático. A boca fica “enrugada” pela sua adstringência, mas é difícil encontrar Vintage novos tão fáceis de beber como estes. Será que este maior polimento compromete a sua longevidade? David Guimarães responde:
— Os 2016 vão evoluir mais depressa do que, por exemplo, os 2011. Mas isso não quer dizer que daqui a 30 ou 40 anos tenham perdido a sua alma e a sua graça. O seu volume, tanino e acidez são mais do que suficientes para uma longa vida em garrafa.
O nível de refinamento aromático, a consistência e o equilíbrio de Vintage como os de 2007 (ano em que um Graham’s obteve 100 pontos em 100 na revista norte-americana “Wine Spectator”), de 2011 ou de 2016 é consequência de uma combinação de ciência e de saber empírico acumulado ao longo de gerações. Ana Rosas, enóloga da Ramos Pinto, é parte da família que fundou a empresa no século XIX; Charles Symington é filho de Peter, outrora conhecido como “Senhor Nariz”; e David Guimarães descende de uma linhagem de enólogos que trata dos vinhos da Fonseca e, mais tarde, da Taylor’s desde o princípio do século XX. Este conhecimento que passa de pais para filhos ou para primos permite às atuais gerações saber, por exemplo, que uma determinada vinha no rio Torto, um afluente do Douro confere estrutura a um vinho e que outra no vale do Pinhão oferece-lhe um potencial aromático distintivo.
É a conjugação desses saberes com um conhecimento profundo dos atributos das castas, das altitudes e das exposições de vinhos ao sol que determina que cada marca de Vintage tenha o seu próprio estilo. Sim, os Vintage não são todos iguais, mesmo quando, na juventude, nos proporcionam sensações aromáticas explosivas ou elevados níveis de adstringência na língua. Há Vintage mais austeros, como os Dow’s ou os Sandeman, e há Vintage mais graciosos como os Graham’s ou os Ramos Pinto. É precisamente a origem dos seus lotes que lhes determina a identidade e reforça as diferenças. Os Sandeman têm o seu solar na Quinta do Vau, os Cockburn’s na Quinta dois Canais, os Dow’s na Quinta do Bomfim, ou a Taylor’s na Quinta de Vargellas.
Para felicidade dos apreciadores de vinho do Porto (e dos produtores em geral, claro), nos três últimos anos a natureza no Douro foi excepcionalmente generosa. Ao excelente 2015 sucede um soberbo 2016 e, tudo o indica, nas caves está já maturando um extraordinário 2017. Para os amantes de vinho do Porto, as notícias são, por isso, excelentes.