Simone Kafruni
Correio Braziliense
Gigante asiático, que comprou hidrelétrica por R$ 7,2 bilhões, na semana passada, planeja destinar mais US$ 20 bilhões ao setor de infraestrutura nos próximos 12 meses
Os chineses nunca investiram tanto no Brasil e, graças ao apetitoso — e barato — cardápio de privatizações do governo Michel Temer, é apenas o começo. Entre 2003 e 2017, foram US$ 47 bilhões em investimento direto no país, sem contar a Usina Hidrelétrica São Simão, que o grupo chinês State Power Investment Corporation (Spic), dono da Pacific Energy, arrematou por R$ 7,2 bilhões na semana passada. Equivalente a US$ 2,3 bilhões, o bônus de outorga, no entanto, é um aperitivo diante da previsão de injeção de US$ 20 bilhões nos próximos 12 meses.
Além dos preços de ocasião dos ativos brasileiros, os baixos juros praticados no mercado global e a gorda taxa de poupança da China, de 50% do Produto Interno Bruto (PIB), explicam a fome do gigante asiático, que também pretende, com o avanço voraz em vários países emergentes, fortalecer-se como líder mundial.
O secretário adjunto de Assuntos Internacionais do Ministério do Planejamento, Renato Baumann, diz que o aumento da intensidade e do ritmo dos investimentos chineses no Brasil é uma coisa nova. “É um aprendizado para eles e para nós”, afirma. Baumann faz um resgate histórico para explicar o fenômeno. “As reservas da China chegaram a US$ 4 trilhões. Hoje, são estimadas em US$ 3 trilhões. Grande parte estava aplicada em títulos do Tesouro americano, cujas taxas caíram muito”, conta.
O governo chinês estimulou o investimento em projetos específicos para melhorar a remuneração das suas reservas. Assim, o fluxo do capital para a América Latina, explica o secretário, começou há 10 anos, a partir de aportes nas cadeias dos produtos que a China mais consome. “Inicialmente, o foco foi em alimentos e minérios. Só recentemente, o país passou a apostar em projetos de infraestrutura”, diz.
Baumann destaca, no entanto, que é difícil explicar como os números do Banco Central sejam tão baixos. Conforme a última nota de setor externo da autoridade monetária, o ingresso de capital chinês em investimentos diretos no país foi de US$ 879 milhões em 2016 e de US$ 179 milhões de janeiro a agosto de 2017. “Uma dificuldade estatística é que parte disso deve passar por paraísos fiscais”, acredita.
As planilhas do Planejamento, contudo, contabilizam 180 projetos anunciados desde 2003, 87 confirmados, com injeção de US$ 47 bilhões até 2017, sem adicionar a mais recente aquisição. “O grosso está em energia e ingressa por meio de fusões e aquisições, com a compra total ou de participação em empresas já existentes”, diz Baumann.
Se o apetite chinês já enche os olhos, o melhor está por vir, garante o presidente da Câmara Brasil-China (CCIBC), Charles Tang. “Os investimentos no Brasil estão mal começando. Nos próximos 12 meses, vão entrar mais US$ 20 bilhões”, anuncia. A China está investindo maciçamente no mundo inteiro, mas o Brasil está no centro das atenções por duas razões, diz Tang. “Há alguns anos, todos os projetos estavam nas mãos das grandes empreiteiras no Brasil. Com a crise e a paralisação das obras, os ativos ficaram baratos”, afirma.
Domínio – O outro motivo, explica o presidente da CCIBC, passa pelas ambições geopolíticas do governo chinês. “O incentivo aos países do Brics busca formar um grupo forte o suficiente para superar o G7 (as sete economias mais ricas do mundo) e, assim, a China se consolidar como liderança mundial”, assinala.
Para Tang, o mundo desenvolvido nunca entendeu as prioridades dos países emergentes e a China quer tornar o Brics maior e mais forte politicamente. “Temos um quarto da população do mundo, 40% da economia e 40% do território mundial. Com a ampliação do Brics, a partir dos investimentos, a China terá mais voz no sistema financeiro mundial”, esclarece.
O modelo de investimento agressivo em países emergentes demonstra uma mudança significativa na arte de relações internacionais da China, avalia Tang. “Nações fortes sempre dominaram as mais fracas com armas. A China inventou uma nova maneira: envia seus empresários para comercializar e investir nos países. Não suas tropas. Assim, o rastro não é de sangue e destruição, e sim de desenvolvimento e prosperidade”, sentencia.
Projetos consolidam presença no país – Em 2017, os chineses devem aportar mais de R$ 24 bilhões, cerca de US$ 7,5 bilhões, no Brasil. Além da usina São Simão arrematada pela State Power Investment Corporation (Spic), que havia comprado a Pacific Energy em abril, a gigante mundial do setor elétrico State Grid pagou R$ 14 bilhões pelo controle acionário da CPFL Energia no início do ano.
O grupo HNA assumiu a participação de 31% da Odebrecht na concessionária do Aeroporto Galeão (RJ) por cerca de R$ 60 milhões. E, no início de setembro, a China Merchants Port Holdings adquiriu 90% da operadora portuária TCP Participações, no Porto de Paranaguá (PR), por R$ 2,9 bilhões.
“A Xangai Eletric está vindo em outubro assinar o contrato do projeto de construir uma linha de transmissão de 1,8 mil quilômetros no Rio Grande do Sul. Deve começar com US$ 1 bilhão em investimentos”, antecipa o presidente da Câmara Brasil-China (CCIBC), Charles Tang.
Túlio Cariello, coordenador de análise do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), explica que, além do interesse maior de empresas entrantes, os chineses estão fortalecendo a presença de companhias que já estão no Brasil. “A State Grid e o Grupo Three Gorges (GTC) estão se consolidando, assim como a China Comunications Construction Company (CCCC) e a HNA”, enumera.
Estudo do CEBC mostra a retomada do interesse chinês no Brasil, com o ápice dos investimentos em 2010, que depois minguaram até voltarem a crescer (veja quadro). Uma nova fase teve início em 2015, caracterizada não apenas pelo aumento do valor investido, mas também pelo tipo de projetos nos quais as empresas chinesas têm focado sua atuação.
Em um primeiro momento, a China priorizou investimentos em atividades ligadas às commodities, que constituem a maior parte da pauta de produtos exportados pelo Brasil. Depois, as empresas chinesas buscaram oportunidades na área industrial, tendo em vista o mercado doméstico brasileiro. Um terceiro momento da relação bilateral começou quando bancos chineses se estabeleceram no país ou adquiriram participação acionária em instituições financeiras brasileiras ou internacionais já em operação no Brasil.
Oportunidades –“A parceria com bancos no mercado brasileiro facilitou aquisições e fusões, que são as principais formas de ingresso de capital chinês no Brasil”, explica Cariello. Depois disso, os aportes deslancharam, sobretudo em energia elétrica e infraestrutura. A HNA, antes de entrar na concessionária Rio Galeão este ano, comprou parcela da Azul Linhas Aéreas.
Por trás desse interesse todo, há muito mais do que a questão pragmática do investidor chinês, que vê oportunidade de ativos baratos, destaca Cariello. “Isso segue um movimento de investimento global. A China tem taxa de poupança muito alta. Houve um desinteresse dos Estados Unidos em relação à América Latina, que abriu espaço para as novas potências, como a China”, ressalta.
O coordenador do CEBC afirma que, historicamente, os EUA dominavam os investimentos na América Latina, mas a prioridade se esvaiu diante da urgência do combate ao terrorismo e também da política do presidente norte-americano Donald Trump, com foco no mercado interno. “A China aproveitou isso em toda a América Latina, mas o volume no Brasil é maior por uma questão do tamanho da economia do país”, diz.
Visão estratégica e de longo prazo – A necessidade de aporte de capital, de modernização da infraestrutura e da geração de emprego e renda é muito maior do que os riscos de uma eventual dependência dos chineses por conta dos investimentos maciços da China no Brasil. A opinião é consensual entre especialistas do setor, que não temem pela desnacionalização de ativos essenciais para o desenvolvimento do país, mas analisam o interesse pontual do gigante asiático.
O diretor da Macroplan, Cláudio Porto, observa que a China já é o maior importador de produtos brasileiros, com cerca de 17%. “Na sua relação com o mundo, a China tem uma visão estratégica sofisticada e de longo prazo”, diz. Isso explicaria grande parte do interesse deles pelo Brasil. “Podemos ser grandes fornecedores de commodities agrícolas e minerais e de alguns produtos intermediários ou mesmo industrializados, e somos um grande mercado para manufaturados chineses, além de demandantes de capital físico (infraestrutura) e financeiro”, contextualiza.
Por esse ponto de vista, avalia Porto, o grande interesse da China em investir no Brasil tem como motivação principal a conquista de posições a longo prazo e também um certo oportunismo. “O Brasil está muito barato e oferece oportunidades valiosas, especialmente no setor elétrico”, assinala. Além disso, complementa, a China tem cacife para exercer opções de investimento de longo prazo no Brasil e correr o risco-Brasil. “Eles têm muito capital, e a um custo baixíssimo. Ou seja, nossas oportunidades de investimento são atrativas para os chineses, mesmo com taxas de retorno mais demoradas”, afirma.
Como o mercado consumidor chinês é gigante e cada vez mais demandante, garantir suprimentos a longo prazo é um bom negócio para a China. “Todas as evidências indicam que os chineses serão players com presença crescente nos investimentos e nos negócios no Brasil”, resume.
O risco de dependência, explica Porto, está nas mãos do Brasil. “Se o país estruturar uma boa regulação, reforçar sua capacidade diplomática e montar uma boa estratégia de abertura e relação comercial e de negócios com o mundo, os benefícios que teremos com a presença de capital estrangeiro aqui serão muito maiores do que os riscos.”
Soberania – Para Cláudio Frischtak, presidente da InterB Consultoria, a China tem uma taxa de poupança fora da curva. “Com poupança de 50% do Produto Interno Bruto (PIB), é normal que parte escape para fora do país. A Coreia do Sul tem 35%, e já é bom. No Brasil, temos 15%”, compara. O governo chinês tem uma política de estimular, mas controlar os investimentos fora da China, tanto que, no país, o grosso do aporte não é em projetos greenfield (começando do zero), nos quais há risco ambiental. É em fusões e aquisições”, ressalta.
O especialista explica que o investimento estrangeiro melhor é aquele que vem constituir um novo ativo. “Mas, quando compram os já existentes, os chineses tendem a fazer um esforço de modernização. Isso é positivo”, avalia. Frischtak diz que não há risco de desnacionalização. “Um país com 15% do PIB de taxa de poupança não pode prescindir de investimentos estrangeiros. Ainda mais quando as estatais são capturadas por interesses políticos. Quem ameaça nossa soberania somos nós mesmos”, sentencia.
Fundo para infraestrutura – A criação de um fundo China-Brasil para investimento em infraestrutura foi literalmente um negócio da China. Já constituído, o fundo tem US$ 20 bilhões em recursos, sendo que o banco estatal chinês entra com US$ 15 bilhões e o Brasil, com US$ 5 bilhões, na proporção de três para um. O poder decisório, no entanto, é igual para as duas nações. “Um bom negócio, não?”, indaga o presidente da Câmara Brasil-China, Charles Tang.
O secretário adjunto de Assuntos Internacionais do Ministério do Planejamento, Renato Baumann, afirma que já recebeu 21 consultas para uso de recursos do fundo. Três projetos já foram formalizados. “Não podemos divulgar, só depois da aprovação”, diz.
Baumann explica que os empresários com interesse em investir precisam se credenciar, por meio de um formulário de carta consulta, com os dados essenciais, no site do ministério. “Isso é analisado em nível técnico pelo governo brasileiro e pelo governo chinês. A decisão final fica a cargo de um comitê, formado por autoridades dos dois países.”
Além de um instrumento de financiamento, o fundo deve intensificar as relações entre as duas nações, espera Baumann. “A expectativa é muito favorável. Há grande interesse. Isso deve ser um impulso importante para entrada de recursos chineses no país”, acrescenta.
Áreas estratégicas
Cláudio Porto, diretor da Macroplan, alerta para o interesse dos chineses em ativos que geram receita imediata. “Por exemplo, a Usina de São Simão, que já está em operação. Ao contrário de um bloco de petróleo do pré-sal, que exigirá alguns anos de desenvolvimento”, assinala. Porto lista setores atrativos para os chineses: “Agronegócio, para garantir suprimentos de longo prazo; energia, especialmente a elétrica, mas eles tenderão a diversificar; infraestrutura de transportes de alta capacidade, como rodovias, aeroportos, portos e ferrovias (essa última, se melhorar a modelagem de operação); e negócios de ocasião.”
No entender de Miguel Neto, sócio do escritório Miguel Neto Advogados, os empresários chineses também demonstram interesse pelo setor aéreo, com participação na Azul e no Galeão. “Eles vão olhar com apetite a nova rodada de concessão de aeroportos. Não estão mais investindo na economia velha. Preferem ser supridores de produtos para o Brasil, e apostar em áreas estratégicas”, projeta.